A desconsideração da pessoa jurídica no redirecionamento de execuções fiscais
17/07/2019
O artigo 135, III, do CTN trata das hipóteses em que excepcionalmente a autonomia do patrimônio das pessoas jurÃdicas é relativizada para permitir a responsabilização pessoal de sócios por débitos tributários das empresas decorrentes de atos praticados (i) com abuso de poder, (ii) que configurem infração à lei ou (iii) ao contrato/estatuto social.
Como o dispositivo aparentemente estabelece - nas hipóteses em que especifica - uma espécie de responsabilização “automática” dos sócios administradores, o STJ passou a autorizar o chamado “redirecionamento” da execução fiscal contra esses “terceiros”[1].
Nesse contexto, a doutrina e a jurisprudência consolidaram-se no sentido de que não se trata de desconsideração de personalidade jurÃdica propriamente dita, de modo que bastaria mero requerimento, via petição intercorrente, de inclusão dos corresponsáveis no polo passivo da ação exacional.
Segundo Heleno Torres, “quanto aos demais dispositivos do Código Tributário Nacional, queremos evidenciar que os art. 124 e 135, em nenhuma circunstância, têm o condão de permitir formas de desconsideração da personalidade jurÃdica, como pensam alguns. (...) Este artigo 135, portanto, contempla regra que se aplica à relação jurÃdica formada entre as pessoas indicadas e os que sofrem qualquer consequência patrimonial decorrente de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos, tão só. (...). Nada tem que ver com ‘desconsideração da personalidade jurÃdica’ (...)”[2].
É justamente nesse sentido o entendimento pacÃfico do STJ, como ilustra o seguinte julgado:
“REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL. (...) INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÃDICA. DESNECESSIDADE. (...)
(...) V - Evidenciadas as situações previstas nos arts. 124, 133 e 135, todos do CTN, não se apresenta impositiva a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurÃdica, podendo o julgador determinar diretamente o redirecionamento da execução fiscal para responsabilizar a sociedade na sucessão empresarial. (...)”[3].
Situação juridicamente diversa ocorre quando o Fisco requerer a inclusão de sócio administrador no polo passivo de execução fiscal sob a alegação de formação de grupo econômico gerido mediante abuso de personalidade jurÃdica, desvio de finalidade ou confusão patrimonial - o que, em tese, autoriza a desconsideração da personalidade jurÃdica da devedora originária para atingir os bens particulares do responsável, com fundamento no abaixo transcrito artigo 50 do Código Civil.
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurÃdica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurÃdica”.
Com o advento do CPC/2015, essa desconsideração de personalidade jurÃdica deve ser discutida em incidente processual próprio que garanta aos sócios administradores o prévio exercÃcio do direito ao contraditório e à ampla defesa.
É exatamente o que dispõem os artigos 133 e 135 do citado diploma:
“Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurÃdica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
§ 1° O pedido de desconsideração da personalidade jurÃdica observará os pressupostos previstos em lei”.
“Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurÃdica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabÃveis no prazo de 15 (quinze) dias”.
E não poderia ser diferente, afinal, a melhor cautela processual recomenda que as discussões acessórias ao objeto central da lide sejam instrumentalizadas via incidente, a fim de evitar eventual prejuÃzo à análise do mérito.
Ademais, o próprio artigo 795, parágrafo 4°, do CPC é categórico ao obrigar a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurÃdica para a responsabilização dos sócios por dÃvidas contraÃdas por suas empresas:
“Art. 795. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dÃvidas da sociedade, senão nos casos previstos em lei. (...)
§ 4° Para a desconsideração da personalidade jurÃdica É OBRIGATÓRIA A OBSERVÂNCIA DO INCIDENTE previsto neste Código”. (grifamos)
O caput do artigo 134 do novo código ainda prevê que o incidente também é aplicável à s execuções de tÃtulo extrajudicial:
“Art. 134. O incidente de desconsideração é cabÃvel em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em tÃtulo executivo extrajudicial”. (grifamos)
Acerca da compatibilidade procedimental do incidente de desconsideração da personalidade jurÃdica com as execuções fiscais, assevera James Marins:
“Segundo pensamos, o incidente previsto nos artigos 133 e seguintes do CPC pode ser perfeitamente aplicado à s execuções fiscais.
Em primeiro lugar porque o instituto contribui para evitar a permanência de prática que conspira contra o due process of law ao permitir que cidadãos sejam executados sem que nunca tenham tido a oportunidade de defesa, administrativa ou judicial. Em segundo, porque a divergência sobre a natureza da responsabilidade em tela não impede a aplicação do instituto processual no âmbito fiscal, pois seu componente material não é obstáculo para que seja aplicado, mutatis mutandis, o incidente de processo que corrige o grave erro consistente na promoção da gravosa execução sem tÃtulo”[4].
Por sua vez, a Fazenda Nacional invoca o critério da especialidade para sustentar que (i) o codex processual apenas é aplicável subsidiariamente ao processo executivo fiscal (artigo 1° da Lei 6.830/80) e que (ii) o artigo 133, parágrafo 4°, do CPC atribuiu ao incidente de desconsideração da personalidade jurÃdica eficácia suspensiva teoricamente incompatÃvel com a LEF.
Todavia, trata-se de uma causa suspensiva “mitigada” pois, em paralelo, o CPC trouxe mecanismos que asseguram o resultado útil do processo enquanto o incidente é processado e julgado, como a previsão expressa de que “a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar” (artigo 792, parágrafo 3°).
Ademais, diante das alterações promovidas pela Lei 11.382/06, que introduziu o artigo 739-A ao então vigente CPC de 1973, o STJ decidiu privilegiar a interpretação sistemática para aplicá-lo à s execuções fiscais, exigindo a demonstração da “relevância dos fundamentos” e do risco de “grave dano de difÃcil ou incerta reparação” para a atribuição de efeito suspensivo aos embargos (Recurso Repetitivo 1.272.827/PE).
Lembramos que a Lei 6.830/80 somente exige a garantia do juÃzo como condição de procedibilidade dos embargos (artigo 16, parágrafo 1°) e que, até o advento da Lei 11.382/06, era pacÃfico que o mero recebimento de tal ação tinha o condão de sobrestar o curso do feito executivo justamente por força da redação do artigo 739, parágrafo 1°, do CPC de 1973 dada pela Lei 8.953/94.
Ou seja, diante da aparente lacuna da LEF quanto aos efeitos dos embargos, o STJ já teve o ensejo de aplicar à s execuções fiscais causa suspensiva extraÃda do CPC, inclusive impondo aos contribuintes requisitos - também previstos no diploma de ritos - adicionais à garantia do juÃzo.
Analisando todo esse cenário jurÃdico-normativo, a 1ª Turma do STJ decidiu recentemente - nos autos do Recurso Especial 1.775.269/PR, relatado pelo ministro Gurgel - que se torna obrigatória a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurÃdica se o requerimento de redirecionamento do executivo fiscal mascarar verdadeiro pedido de desconsideração de personalidade jurÃdica fundamentado no artigo 50 do Código Civil. Transcrevemos a ementa desse relevantÃssimo precedente:
“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÃRIO. EXECUÇÃO FISCAL. REDIRECIONAMENTO A PESSOA JURÃDICA. GRUPO ECONÔMICO ‘DE FATO’. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÃDICA. CASO CONCRETO. NECESSIDADE.
1. O incidente de desconsideração da personalidade jurÃdica (art. 133 do CPC/2015) não se instaura no processo executivo fiscal nos casos em que a Fazenda exequente pretende alcançar pessoa jurÃdica distinta daquela contra a qual, originalmente, foi ajuizada a execução, mas cujo nome consta na Certidão de DÃvida Ativa, após regular procedimento administrativo, ou, mesmo o nome não estando no tÃtulo executivo, o fisco demonstre a responsabilidade, na qualidade de terceiro, em consonância com os artigos 134 e 135 do CTN. (...)
(...) 3. O redirecionamento de execução fiscal a pessoa jurÃdica que integra o mesmo grupo econômico da sociedade empresária originalmente executada, mas que não foi identificada no ato de lançamento (nome na CDA) ou que não se enquadra nas hipóteses dos arts. 134 e 135 do CTN, depende da comprovação do abuso de personalidade, caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, tal como consta do art. 50 do Código Civil, daà porque, nesse caso, é necessária a instauração do incidente de desconsideração da personalidade da pessoa jurÃdica devedora.
4. Hipótese em que o TRF4, na vigência do CPC/2015, preocupou-se em aferir os elementos que entendeu necessários à caracterização, de fato, do grupo econômico e, entendendo presentes, concluiu pela solidariedade das pessoas jurÃdicas, fazendo menção à legislação trabalhista e à Lei n. 8.212/1991, dispensando a instauração do incidente, por compreendê-lo incabÃvel nas execuções fiscais, decisão que merece ser cassada”. (grifamos)
Conforme se depreende do último item da ementa, a turma reconheceu expressamente que a sistemática do incidente de desconsideração da personalidade jurÃdica é compatÃvel com o rito da execução fiscal.
Além disso, o relator, ministro Gurgel de Faria, cujo voto foi acompanhado por todos os seus pares, distinguiu de maneira cartesiana o redirecionamento de execução contra os sócios administradores, baseado no artigo 135 do CTN, e a desconsideração da personalidade jurÃdica com espeque no artigo 50 do Código Civil, em virtude do reconhecimento de grupo econômico.
Destacamos o seguinte trecho do voto condutor:
“A atribuição de responsabilidade tributária aos sócios gerentes, nos termos do art. 135 do Código Tributário Nacional, não depende mesmo do incidente de desconsideração da personalidade jurÃdica da sociedade empresária prevista no art. 133 do CPC/2015, pois a responsabilidade dos sócios, de fato, já lhes é atribuÃda pela própria lei, de forma pessoal e subjetiva. (...)
Igualmente, a responsabilidade subsidiária do art. 134, VII, do CTN autoriza o redirecionamento da execução fiscal aos sócios na hipótese de não ser possÃvel exigir o crédito tributário da sociedade empresária liquidada. Nesses casos, como afirmado, não há necessidade de desconsiderar a personalidade da pessoa jurÃdica devedora, pois a legislação, estabelecendo previamente a responsabilidade tributária do terceiro, permite a cobrança do crédito tributário diretamente dos terceiros que elenca.
Porém, essa conclusão não é adequada quando a pretensão fazendária de redirecionamento mira pessoa jurÃdica integrante do mesmo grupo econômico a que pertence a sociedade empresária originalmente executada, que não está indicada na Certidão de DÃvida Ativa e à qual não é atribuÃda a responsabilidade, na qualidade de terceiro (arts. 134 e 135 do CTN)”. (grifamos)
A partir dessa diferenciação, o relator concluiu que “sem a indicação da pessoa jurÃdica no ato de lançamento, ou sendo inexistentes as hipóteses dos arts. 134 e 135 do CTN, a imputação da responsabilidade ao grupo econômico ou à pessoa jurÃdica dele integrante dependerá da desconsideração da personalidade jurÃdica, cujo reconhecimento somente pode ser obtido com a instauração do referido incidente (art. 133 do CPC/2015)” (grifamos).
Mais recentemente, a 1ª Turma ratificou esse posicionamento, ao julgar o Agravo em Recurso Especial 1.173.201/SC, igualmente elatado pelo ministro Gurgel de Faria.
Como se não bastasse, o II Fórum Nacional de Execução Fiscal promovido pela Ajufe aprovou o seguinte enunciado sobre o tema:
“Enunciado n.° 21: O incidente de desconsideração da personalidade jurÃdica, previsto no art. 133 do NCPC, é aplicável aos casos em que há pedido de redirecionamento da execução fiscal da dÃvida ativa, com fundamento na configuração de grupo econômico, ou seja, nas hipóteses do art. 50 do CC”.
Por fim, ambas as turmas de Direito Privado do STJ possuem entendimento de que a desconsideração da personalidade jurÃdica, decorrente do reconhecimento de grupo econômico, na forma do artigo 50 do Código Civil, depende da instauração do incidente[5].
Após o julgamento do Recurso Especial 1.775.269/PR, a Procuradoria da Fazenda Nacional opôs embargos de divergência, já distribuÃdos à 1ª Seção do STJ sob a relatoria da ministra Assusete Magalhães.
No julgamento dos referidos embargos, a seção terá a oportunidade de estabelecer um corte jurisprudencial lógico diferenciando o redirecionamento de execução fiscal contra sócio administrador em decorrência da imputação de responsabilidade tributária da desconsideração da personalidade jurÃdica com fundamento no Código Civil, em virtude do reconhecimento de grupo econômico, que, à luz do CPC, inequivocamente exige instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurÃdica.
[1] A Súmula 435 do STJ dispõe que “Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicÃlio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente” (grifamos).
[2] TORRES, Heleno. Direito Tributário e Direito Privado. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, p. 471/472.
[3] REsp 1.786.311/PR; rel. min. Francisco Falcão; 2ª Turma; J.: 9/5/2019; DJe.: 14/5/2019.
[4] Marins, James. Direito Processual Tributário Brasileiro: administrativo e judicial; São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 769.
[5] A tÃtulo de exemplo, citamos o REsp 1.647.362/SP; 3ª Turma; rel.: min. Nancy Andrighi; J.: 3/8/2017; DJe.: 10/8/2017 e o REsp 1.729.554/SP; 4ª Turma; rel. min. Luis Felipe Salomão, J.: 3/5/2018, DJe.: 6/6/2018.
Fonte: Revista Consultor JurÃdico